quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

LISBOA MISTURA estive lá e foi lindo...


Teatro São Luiz - 29 e 30 de Novembro - 18HOO ÀS 23HOOUma ideia Sons da Lusofonia em co-produção com a EGEAC E.M./SLTM


Quinta-feira - 29 Novembro, 18h00 Jardim de Inverno, Um novo olhar sobre Lisboa

Debate,

Quinta-feira - 29 Novembro, 20h00

Sala Principal, Monte Lunai, Música e dança tradicionais

Quinta-feira - 29 Novembro, 20h00

Sala Principal, Jon Luz & Filipa Pais, Música de Cabo Verde e de Portugal,

Quinta-feira - 29 Novembro, 22h00, Sala Principal, À Noite o Sol (Negócios Estrangeiros), Teatro, música, vídeo e literatura

Quinta-feira - 29 Novembro, 23h00

Jardim de Inverno, Afro Blue DJs, Set especial "Lx Mix"Sexta-feira - 30 Novembro, 18h00

Jardim de Inverno, Batoto Yetu, Dança e música africanas

Sexta-feira - 30 Novembro, 18h45

Jardim de Inverno, Novos Sons, Resultado de workshops

Sexta-feira - 30 Novembro, 20h00

Sala Principal, Kalaf e Nástio Mosquito, Improviso poético do concreto à sanzala

Sexta-feira - 30 Novembro, 20h0

Sala Principal, Kumpania Algazarra, Sonoridades que cruzam influências da música de leste

Sexta-feira - 30 Novembro, 20h00Sala Principal, Lil’John e a Orquestra d’O Estado do MundoEspectáculo criado para o programa

Sexta-feira - 30 Novembro, 22h00Sala Principal, Lis-Nave, Espectáculo de música, Dj SetSexta-feira - 30 Novembro, 23h00Jardim de Inverno, Festa Intercultural, Música, histórias e dança ao vivo

Sexta-feira - 29 e 30 NovembroSão Luiz Café, Sabores do Mundo, Menu Lisboa Mistura

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Italo Calvino

"Foi logo na montra da livraria que descobriste a capa com o título que procuravas. Atrás desta pista visual, lá foste abrindo caminho pela loja dentro através da barreira cerrada dos Livros Que Não Leste, que de cenho franzido te olhavam das mesas e das estantes procurando intimidar-te. Mas tu sabes que não te deves deixar assustar, que no meio deles se estendem por hectares e hectares os Livros Que Podes Passar Sem Ler, os Livros Feitos Para Outros Usos Para Além Da Leitura, os Livros Já Lidos Sem Ser Preciso Sequer Abri-los Por Pertencerem À Categoria Do Já Lido Ainda Antes De Ser Escrito. E assim transpões a primeira muralha de baluartes e cai-te em cima a infantaria dos Livros Que Se Tivesses Mais Vidas Para Viver Certamente Lerias Também De Bom Grado Mas Infelizmente Os Dias Que Tens Para Viver São Os Que Tens Contados. Com um movimento rápido passas por cima deles e vais parar ao meio das falanges dos Livros Que Tens Intenção De Ler Mas Antes Deverias Ler Outros, dos Livros Demasiado Caros Que Podes Esperar Comprar Quando Forem Vendidos Em Saldo, dos Livros Idem Idem Aspas Aspas Quando Forem Reeditados Em Formato De Bolso, dos Livros Que Podes Pedir A Alguém Que Te Empreste e dos Livros Que Todos Leram E Portanto É Quase Como Se Também Os Tivesses Lido. Escapando a estes assaltos diante das torres de reduto, onde se te opõem resistência os Livros Que Há Muito Programaste Ler,
os Livros Que Há Anos Procuravas Sem Os Encontrares,
os Livros Que Tratam De Alguma Coisa De Que Te Ocupas Neste Momento,
os Livros Que Queres Ter Para Estarem À Mão Em Qualquer Circunstância,
os Livros Que Poderias Pôr De Lado Para Leres Se Calhar Este Verão,
os Livros Que Te Faltam Para Pores Ao Lado De Outros Livros Na Tua Estante,
os Livros Que Te Inspiram Uma Curiosidade Repentina,
Frenética E Não Claramente Justificada.
E lá conseguiste reduzir o número ilimitado das forças em campo a um conjunto sem dúvida ainda muito grande mas já calculável num número finito, mesmo que este relativo alívio seja atacado pelas emboscadas dos Livros Lidos Há Tanto Tempo Que Já Seria Altura De Voltar A Lê-los e dos Livros Que Dizes Que Leste e Seria Altura De Te Decidires A Lê-los Mesmo."

ITALO CALVINO Se numa noite de Inverno um viajante

Carlos Drummond de Andrade

Amar se Aprende Amando


O mundo é grande e cabe
nesta janela sobre o mar.
O mar é grande e cabe
na cama e no colchão de amar.
O amor é grande e cabe
no breve espaço de beijar.

Carlos Drummond de Andrade

José Gomes Ferreira

Entrei no café com um rio na algibeira
e pu-lo no chão,
a vê-lo correr da imaginação...
A seguir, tirei do bolso do colete
nuvens e estrelas
e estendi um tapete
de flores
a concebê-las.
Depois, encostado à mesa,
tirei da boca um pássaro a cantar
e enfeitei com ele a Natureza
das árvores em torno
a cheirarem ao luar
que eu imagino.
E agora aqui estou a ouvir
A melodia sem contorn
Deste acaso de existir
-onde só procuro a Beleza
para me iludir
dum destino.

José Gomes Ferreira

quarta-feira, 3 de outubro de 2007


Um colo é um solo que gera calor...

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Marguerite Yourcenar

"A palavra escrita, ensinou-me a escutar a voz
humana, assim como as grandes atitudes imóveis das
estátuas, me ensinaram a apreciar os gestos".
(Marguerite Yourcenar).

sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Meninos de todas as cores

Era uma vez um menino branco chamado Miguel, que vivia numa terra de meninos brancos e dizia:
É bom ser branco
porque é branco o açúcar, tão doce,
porque é branco o leite, tão saboroso,
porque é branca a neve, tão linda.
Mas certo dia o menino partiu numa grande viagem e chegou a uma terra onde todos os meninos eram amarelos. Arranjou uma amiga chamada Flor de Lótus, que, como todos os meninos amarelos, dizia:
É bom ser amarelo
porque é amarelo o Sol
e amarelo o girassol
mais a areia da praia.
O menino branco meteu-se num barco para continuar a sua viagem e parou numa terra onde todos os meninos são pretos. Fez-se amigo de um pequeno caçador chamado Lumumba que, como os outros meninos pretos, dizia:
É bom ser preto
como a noite
preto como as azeitonas
preto como as estradas que nos levam para
toda a parte.
O menino branco entrou depois num avião, que só parou numa terra onde todos os meninos são vermelhos.
Escolheu para brincar aos índios um menino chamado Pena de Águia. E o menino vermelho dizia:
É bom ser vermelho
da cor das fogueiras
da cor das cerejas
e da cor do sangue bem encarnado.
O menino branco foi correndo mundo até uma terra onde todos os meninos são castanhos. Aí fazia corridas de camelo com um menino chamado Ali-Babá, que dizia:
É bom ser castanho
como a terra do chão
os troncos das árvores
é tão bom ser castanho como um chocolate.
Quando o menino voltou à sua terra de meninos brancos, dizia:
É bom ser branco como o açúcar
amarelo como o Sol
preto como as estradas
vermelho como as fogueiras
castanho da cor do chocolate.
Enquanto, na escola, os meninos brancos pintavam em folhas brancas desenhos de meninos brancos, ele fazia grandes rodas com meninos sorridentes de todas as cores.

Luísa Ducla Soares

Luisa Ducla Soares

O Soldado João

Era uma vez um soldado chamado João. Vinha de sachar milho, de regar cravos, de semear couves e manjericos.
Agora, toca a marchar, de espingarda ao ombro, mochila às costas, botas de cano, farda a rigor.
Pelos campos fora, o soldado João era a vergonha dos batalhões. Trazia uma flor ao peito, punha as mãos nas algibeiras, coçava o nariz, não acertava o passo. E, para cúmulo, assobiava ou cantava modinhas da sua aldeia.
Bem lhe ralhava o sargento, o ameaçava o capitão, o castigava o general.
O soldado João continuava a marchar, feliz e desengonçado, como se fosse à feira comprar gado ou ao mercado vender feijão.
Mas tanto, tanto marchou o soldado João, que chegou à terra da guerra.
Todos os soldados carregaram as espingardas e fizeram pontaria. Mas o soldado João achou indelicado não ir cumprimentar os colegas da outra banda. Pousou a arma, saltou a trincheira, avançou estendendo a mão.
Então, os outros soldados, espantados, estenderam também a mão.
— Fogo! — gritava o sargento.
— Disparem! — mandava o capitão.
— Atirem! — ordenava o general.
Mas os soldados eram tantos que demorava muito tempo a cumprimentá-los. Foi o sargento buscar o soldado João, dizendo:
— Rapaz, não te lembras de que te ensinei que a guerra é para matar? Vou pôr-te a corneteiro, já que não tens jeito para atirador.
O soldado João pegou na corneta, ei-lo a soprar, e logo o fandango ecoou pelos campos fora, convidando à dança.
Sapateava a tropa, rodopiava, batia palmas.
— Alto! — gritava o sargento.
— Basta! — mandava o capitão.
— Parem! — ordenava o general.
Arrancou o sargento a corneta ao soldado João e, zangado, explodiu:
— Vais para cozinheiro do exército. Ao menos aí não empatarás a guerra.
Mal chegou à cozinha, foi buscar café. Arrastava pelas fileiras, fumegando, o enorme panelão, apetitoso, perfumado.
Aproximava-se de cada soldado, tirava-lhe o capacete para fazer de malga, despejava-lhe uma concha de café. Amigos e inimigos, todos se deliciavam com tão inesperado pequeno-almoço.
— Ao vosso lugar! — gritava o sargento.
— A postos! — mandava o capitão.
— Perfilar! — ordenava o general.
Tiraram a panela ao soldado João, enrolaram-no numa bandeira da cruz vermelha, dizendo:
— Já não és atirador, nem corneteiro, nem cozinheiro. Daqui por diante, és enfermeiro militar.
Mal se viu na nova função, ei-lo a correr à procura de feridos.
Viu um tenente com um olho negro e foi tratá-lo.
Viu um furriel com uma picada de abelha e, num instante, lhe arrancou o ferrão.
Notou que os dois generais inimigos coxeavam ligeiramente, descalçou-lhes as botas e pôs-se a tirar-lhes os calos.
Então, o incrível aconteceu.
Os dois generais levantaram-se ao mesmo tempo e condecoraram-no com duas luzentes medalhas de ouro.
Como era noite, acharam que já passara o tempo da guerra, apertaram as mãos e partiram em paz.
O soldado João sete dias andou até chegar à sua aldeola, onde de novo sacha milho, rega cravos, semeia couves e manjericos.


Luísa Ducla Soares
O soldado João


Porto, Editora Civilização, 2002

Reflexões de um psiquiatra


As dádivas da vida

As violências, as situações negativas, as dificuldades encontradas ao longo da vida parecem deixar mais vestígios no nosso espírito, na nossa memória, no nosso corpo ou na nossa história do que os acontecimentos felizes que possamos ter vivido.
Depositam-se no fundo do ser, abrem fendas e revelam falhas. Inscrevem-se como feridas, como páginas amarrotadas ou rasgadas da nossa história que nos apressamos a contornar, a pôr de lado, a esquecer.
Tudo se passa como se o nosso plano de consciência ficasse cativo de uma percepção clivada e fundamentalmente dual da realidade: de um lado tudo o que é bom, tudo o que está conotado com o prazer, a gratificação e a segurança (todas as mensagens desta natureza são cultivadas, granjeadas, procuradas ou até endeusadas numa ideologia positivista); do outro lado tudo o que gera desprazer, confronto com o inaceitável, com a insegurança, tudo aquilo que será negado, repudiado, dividido a meio, e que, no entanto, permanece nos traços profundos que deixa em nós.
Tudo se passa como se não tivéssemos aprendido a descodificar as mensagens da vida contidas em cada acontecimento, para lá da sua conotação imediata de sofrimento, de obstáculo ou de dificuldade; como se não soubéssemos captar, e menos ainda, acolher os fenómenos gratificantes, os factos positivos, as oferendas da vida, escondidas, mas presentes… em tudo o que nos acontece.
Os Índios da costa oeste do Canadá afirmam que “qualquer acontecimento, qualquer encontro, esconde uma bênção”, desde que aceitemos descobri-lo como tal.
Uma tal disponibilidade de acolhimento, uma tal disposição supõe que possamos entrar num tipo de sintonia particular, numa harmonia, no sentido vibratório do termo, entre aquilo que nos chega da vida e a forma como o vamos captando, recebendo, integrando e assimilando.
Uma rapariga tinha ganho dois lugares gratuitos para um concerto de jazz oferecidos por um grande jornal diário suíço. Fora recebida no salão VIP, agraciada com muitos presentes: saco, disco, esferográfica… No intervalo, para ir beber um refresco, pousa o porta-moedas junto da cadeira, juntamente com o copo vazio, para ficar com as mãos livres e saborear uma barra de chocolate; depois, na confusão do momento, esquece-se do porta-moedas e do saco. Ao voltar para casa, dá-se conta das coisas perdidas: dinheiro, documentos, cartões de crédito. Fica desnorteada, imagina o pior e começa a recriminar-se, tanto pelo que tinha feito como por aquilo que deixara de fazer… Depois, caindo em si, imagina que alguém poderá ter encontrado o porta-moedas, e sobretudo os documentos, e então consegue passar o resto da manhã mais animada. Disse mais tarde: “Eu, que acabava de perder tanta coisa, sentia-me sintonizada com o dar.” No final da manhã, o telefone toca e ouve alguém anunciar-lhe que tudo fora encontrado intacto: porta-moedas, documentos, cartões de crédito e o dinheiro. Tratava-se de um jovem casal que, tendo assistido ao mesmo concerto, vira o porta-moedas e o saco esquecidos debaixo da cadeira. Acrescentou: “Dali em diante, tornámo-nos próximos. Senti uma corrente de afinidades muito forte entre mim e aquele casal. Foi assim que aqueles amigos entraram na minha vida.”
Quando deparamos com aborrecimentos, arrelias ou contrariedades, quando temos um acidente, quando a doença surge, quando um ser amado nos deixa, é-nos muito difícil, num momento inicial, perceber em que é que estes acontecimentos podem ser positivos, em que é que eles são portadores de uma dádiva! Os factos em si, a violência que os acompanha irritam-nos, revoltam-nos, violentam-nos e desestabilizam-nos. Provocam atitudes de reacção ou de defesa. Por vezes até nos ferem, martirizam-nos, podem atingir-nos no mais fundo e destruir uma parte essencial de nós mesmos. É necessário um regresso a nós próprios, um trabalho de interiorização e de tomada de consciência antes de se poder encontrar a chama viva da nossa frágil existência, a abertura possível e a mudança depois do período de insegurança, antes de descobrirmos o milagre que nos é oferecido naquilo que, num primeiro instante, só deixara antever a violência, o caos, a injustiça ou a confusão inaceitável.
“Quando o meu namorado me deixou, julguei que a minha vida tinha acabado. Achava que já não tinha qualquer valor nem utilidade à face da terra, que já não tinha nenhuma razão para viver. E quando uma amiga me propôs que fosse para junto dela, para o estrangeiro, fi-lo por ela, pelo menos assim o julgava. Seis meses depois, fazia-o por mim, ao começar um curso. Estou convicta de que não seria a mulher que hoje sou se não tivesse dado ouvidos aos sinais que me chamavam para fora de mim, para fora do meu país.”
“Esta doença foi uma verdadeira revelação. Mudei o meu modo de vida, a forma de me vestir, os meus passatempos transformaram-se numa festa. É certo que perdi alguns amigos, mas encontrei outros.”
Um acontecimento traumático pode vir a ser revelador de potencialidades inexploradas, de aspectos de nós mesmos ainda por descobrir.
Uma crise, um conflito agudo, podem ser catalisadores de energias dispersas, permitindo mobilizar riquezas desconhecidas, despertar potencialidades inesperadas.
A vida contém muitos presentes. O mecanismo parece ser o seguinte: os sinais positivos, quando são recebidos e tidos como tal, dão energia, e essa energia transforma-se de uma certa forma em sensação de bem-estar, em amor. Pelo contrário, os sinais negativos podem ser captados como violências que despertam feridas que, por sua vez, geram sofrimento. O sofrimento, o ressentimento desvitalizam, consomem energia.
Deveríamos, então, optar por uma aprendizagem das relações humanas que nos permitisse acolher, com gratidão, a vida contida em todo e qualquer acontecimento, em qualquer encontro, em toda a partilha. Pois é disso que de facto se trata. Estar vivo é acolher a vida. Nós não recebemos a vida só no momento da concepção ou do nascimento, como um capital adquirido e que só bastaria gerir ao longo da existência terrestre. Penso que podemos acolher, dinamizar a vida que vem ao nosso encontro sob todas as suas formas, tal como se nos apresenta no dia-a-dia de uma existência.
Em qualquer encontro, através de estímulos que nos chegam da natureza, dos seres, dos acontecimentos e das situações que interagem connosco, a vida está presente, presente em toda a parte, pedindo apenas para encontrar vida. Somos, de algum modo, receptores e passadores de vida.
Acolher a vida, valorizá-la, ampliá-la e espalhá-la à nossa volta, pode ser esse o sentido da nossa passagem sobre a Terra. Poderíamos, assim, renunciar a muitos engodos, a muitas mitologias à volta do amor. Ao aprendermos a amar-nos, poderíamos alargar as nossas relações em termos de “ecologia relacional”.
Se soubermos acolhê-las, é certo que receberemos dádivas da vida mas podemos também oferecê-las, espalhá-las, criá-las. Cada pessoa poderia interrogar-se à noite antes de adormecer:
Que presente de vida pude oferecer hoje? Que palavra, que olhar, que sorriso, que gesto, que aceitação, que confirmação ofereci, recebi, revelei?
Quem é que, todos os dias, é capaz de transmitir, àquele que encontra, o sentimento de fazer crescer a vida, de embelezar o seu olhar, de ter acesso à sua palavra, de se sentir mais amado, mais presente? Quem pode ter o propósito de se aceitar melhor, de ousar amar-se e de amar a tempo inteiro?
Tornar-se, assim, um semeador de Vida.
A vida é uma espécie de dádiva que dura um instante – apenas.
Herbjorg Wassmo
in contadores . destorias

Cayetano Arroyo


E fazei aquilo que a vós
não houve quem fizesse

para que em cada
geração

as árvores cresçam mais direitas.

Cayetano Arroyo

Clarice Lispector

É difícil perder-me. É tão difícil que provavelmente arrumarei depressa um modo de me achar, mesmo que achar-me seja de novo a mentira de que vivo."
Clarice Lispector

Pablo Neruda

Tu eras também uma pequena folha
que tremia no meu peito.
O vento da vida pôs-te ali.
A princípio não te vi: não soube
que ias comigo,
até que as tuas raízes
atravessaram o meu peito,
se uniram aos fios do meu sangue,
falaram pela minha boca,
floresceram comigo.

Dois amantes felizes não têm fim nem morte,
nascem e morrem tanta vez enquanto vivem,
são eternos como é a natureza.

Nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas nunca o teu riso,
porque então morreria.

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Autor desconhecido

Posso ter defeitos, viver ansioso e ficar irritado algumas vezes,
mas não esqueço de que a minha vida é a maior empresa do mundo.
E que posso evitar que ela vá à falência.
Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver,
apesar de todos os desafios, incompreensões e períodos de crise.
Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e se tornar um autor da própria história.
É atravessar desertos fora de si, mas ser capaz de encontrar
um oásis no recôndito da sua alma.
É agradecer a Deus a cada manhã pelo milagre da vida.
Ser feliz é não ter medo dos próprios sentimentos.
É saber falar de si mesmo.
É ter coragem para ouvir um “não”.
É ter segurança para receber uma crítica,
mesmo que injusta.
Pedras no caminho?
Guardo todas, um dia vou construir um castelo…


(texto de autor desconhecido erradamente atribuído a Fernando Pessoa)

terça-feira, 25 de setembro de 2007

Ángel Gonzalez

CANCIÓN DE AMIGA

Nadie recuerda un invierno tan frío como éste.

Las calles de la ciudad son láminas de hielo.
Las ramas de los árboles están envueltas en fundas de hielo.
Las estrellas tan altas son destellos de hielo.

Helado está también mi corazón,
pero no fue en invierno.
Mi amiga,
mi dulce amiga,
aquella que me amaba,
me dice que ha dejado de quererme.

No recuerdo un invierno tan frío como éste.

Sentir de verdade...

"Al lector se le llenaron los ojos de lágrimas, y una voz cariñosa le susurró al oído:
- Por qué lloras, si todo en ese libro es de mentira?
Y él respondió:
- Lo sé pero lo que yo siento es de verdad.

"Ángel González, 101+19 = 120 poemas"

in la double vie de veronique

Era uma vez

Era uma vez...

E um dia a menina parou. Olhou para a estrada e percebeu que estava perdida. Inverteu a marcha até ao último cruzamento. Já lera uma história em que os pássaros tinham comido as migalhas de pão. As pedrinhas não teriam sido suficentes para marcar o caminho. Concluíu que não podia voltar para trás. Sentou-se virada para o desconhecido. E suspirou.
Depois levantou-se, sacudiu a saia e continuou.

in dias de uma princesa

domingo, 23 de setembro de 2007

Umas vezes


Umas vezes o tanto que falta

outras o que já foi caminhado.

lindo

Os anões são tão pequeninos
Que não fazem anos.

Fazem aninhos.
Os gigantes são tão grandalhões Que não fazem anos.
Fazem anões.

terça-feira, 18 de setembro de 2007

Também eu Sophia, quando morrer quero voltar para viver todos os instantes que não vivi junto do mar.

"Dizemos «Sophia» como se esta palavra fosse sinónimo absoluto de poesia".

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco



segunda-feira, 17 de setembro de 2007

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Jorge Luís Borges

Y Uno Aprende

Después de un tiempo,
uno aprende la sutil diferencia
entre sostener una mano
y encadenar un alma,
y uno aprendeque el amor no significa acostarse
y una compañía no significa seguridad
y uno empieza a aprender...
Que los besos no son contratos
y los regalos no son promesas
y uno empieza a aceptar sus derrotas
con la cabeza alta
y los ojos abiertos
y uno aprende a construir
todos sus caminos en el hoy,
porque el terreno del mañana
es demasiado inseguro para planes...
y los futuros tienen una forma de caerse
en la mitad.
Y después de un tiempo
uno aprende que si es demasiado,
hasta el calorcito del sol quema.
Así que uno planta su propio jardín
y decora su propia alma,
en lugar de esperar a que alguien le traiga flores.
Y uno aprende que realmente puede aguantar,
que uno realmente es fuerte,
que uno realmente vale,
y uno aprende y aprende...


y con cada día uno aprende.

Jorge Luís Borges

Starry Starry Night

SAI

"Sai.
Abre a porta e vai.
Estende as mãos à vida e mistura-te com os fumos, os ruídos, as pessoas.
Cheira-os, ouve-os, toca-lhes,mas não te envolvas.
Cria à tua volta a auréolasimples mas intensa da verdade.
Desfaz-te da indiferença vende a apatia.
Dá com alegria, recebe com amor.
Anseia com ansiedade, vive cada minuto.
Para que nunca acordes ao ladode vozes murchas e flores ressequídas!
Para que nunca tenhas de correr em busca de tempo perdido!"

Autor desconhecido

domingo, 16 de setembro de 2007

A Moça Tecelã

Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear.Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte. Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava. Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela. Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza. Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias. Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranqüila.
Tecer era tudo o que fazia.Tecer era tudo o que queria fazer.
Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou em como seria bom ter um marido ao lado. Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado. Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponto dos sapatos, quando bateram à porta.Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando em sua vida.Aquela noite, deitada no ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade. E feliz foi, durante algum tempo.Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque tinha descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.— Uma casa melhor é necessária — disse para a mulher. E parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer. Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente.— Para que ter casa, se podemos ter palácio? — perguntou. Sem querer resposta imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates em prata.Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia.Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira. Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre.— É para que ninguém saiba do tapete — ele disse.E antes de trancar a porta à chave, advertiu: — Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos! Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados.Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer .E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou em como seria bom estar sozinha de novo. Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear.Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu tecido.Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins.Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha.E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela.A noite acabava quando o marido estranhando a cama dura, acordou, e, espantado, olhou em volta.Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu.

Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte.

Marina Colasanti, Um espinho de marfim

O Brincador

Quando for grande, não quero ser médico, engenheiro ou professor.Não quero trabalhar de manhã à noite, seja no que for.Quero brincar de manhã à noite, seja com o que for.Quando for grande, quero ser um brincador.Ficam, portanto, a saber: não vou para a escola aprender a ser um médico, um engenheiro ou um professor.Tenho mais em que pensar e muito mais que fazer. Tenho tanto que brincar, como brinca um brincador, muito mais o que sonhar, como sonha um sonhador, e também que imaginar, como imagina um imaginador... A minha mãe diz que não pode ser, que não é profissão de gente crescida.E depois acrescenta, a suspirar: "é assim a vida".Custa tanto a acreditar. Pessoas que são capazes, que um dia também foram raparigas e rapazes, mas já não podem brincar.A vida é assim? Não para mim. Quando for grande, quero ser um brincador.Brincar e crescer, crescer e brincar, até a morte vir bater à minha porta.Depois também, sardanisca verde que continua a rabiar mesmo depois de morta.Na minha sepultura, vão escrever: Aqui jaz um brincador.

Álvaro Magalhães

Marta Escudero

Marta Escudero é uma contadora mexicana do universo do feminino: de alcova, humilhações, diários, suspiros, trabalho. Conta histórias de "buenas mujeres de moral distraída"- Las Ruleteras. Este era o nome que na Cidade do México se dava aos táxis e que por expansão de significado se começou a dar também às prostitutas, mulheres que são “poco respetuosas con las buenas costumbres y tienen tendencia a un amplio intercambio carnal”. Las Ruleteras é um espectáculo de contos com reportório de contos muito variado de: Isabel Allende "Hermelinda", Gabriel García Márquez "la increible historia de la cândida Erendira y de su abuela desalmada", Francisco Rojas González "Las Rojas Goméz", ou enraizados na tradição oral mais ancestral como o conto que ouvimos. A música de Pep Lladó ambienta e enfatiza os momentos da narração.

(roubado do tricontando)

http://www.youtube.com/watch?v=3JIoi69rPFI

A SEREIA DAS PERNAS TORTAS

Era uma vez uma mulher que tão depressa era feia como era bonita.Quando era bonita, as pessoas diziam-lhe:-Eu amo-te.E iam com ela para a cama e para a mesa.Quando era feia, as mesmas pessoas diziam-lhe:-Não gosto de ti.E atiravam-lhe com caroços de azeitona à cabeça.A mulher pediu a Deus:-Faz-me ou bonita ou feia de uma vez por todas e para sempre.Então Deus fê-la feia.A mulher chorou muito porque estava sempre a apanhar com caroços de azeitona e a ouvir coisas feias. Só os animais gostavam dela, tanto quando era bonita como quando era feia, como agora que era sempre feia. Mas o amor dos animais não lhe chegava. Por isso deitou-se a um poço. No poço, estava um peixe que comeu a mulher de um trago só, sem a mastigar.Logo a seguir passou pelo poço o criado do rei, que pescou o peixe.Na cozinha do palácio as criadas, a arranjarem o peixe, descobriram a mulher dentro do peixe. Como o peixe comeu a mulher mal a mulher se matou e o criado pescou o peixe mal o peixe comeu a mulher e as criadas abriram o peixe mal o peixe foi pescado pelo criado, a mulher não morreu e o peixe morreu.As criadas e o rei eram muito bonitos. E a mulher ali era tão feia que não era feia. Por isso quando os criados foram chamar o rei e o rei entrou na cozinha e viu a mulher, o rei apaixonou-se pela mulher.-Será uma sereia?- perguntaram em coro as criadas ao rei.- Não, não é uma sereia porque tem as duas pernas, muito tortas, uma mais curta que a outra. - respondeu o rei às criadas.E o rei convidou a mulher para jantar.Ao jantar, o rei e a mulher comeram o peixe. O rei disse à mulher quando as criadas foram embora:- Eu amo-te.Quando o rei disse isto, sorriu à mulher e atirou-lhe com uma azeitona inteira à cabeça. A mulher apanhou a azeitona e comeu-a. Mas, antes de comer a azeitona, a mulher disse ao rei:- Eu amo-te.Depois comeu a azeitona. E casaram logo a seguir no tapete de Arraiolos da casa de jantar.

Adília Lopes, In Quem quer casar com a poetisa?

As máquinas de Munari


Bruno Munari é um nome frequentemente associado ao design, mas este é um livro para a infância...
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O Amor é um lugar estranho

Quadras para Ofélia Queiroz (1920)

Quando passo um dia inteiro
Sem ver o meu amorzinho,
Corre um frio de Janeiro
No Junho do meu carinho.


Meu amor, dá-me dois beijos
P'ra me dares um terceiro,
Que é só para haver um quarto
Antes do quinto e do primeiro.


O meu amor é pequeno,
Pequenino não o acho,
Uma pulga deu-lhe um coice,
Deitou-o da cama abaixo.


Fernando Pessoa

Patricia Orr

Los cuentos son ventanas al mundo que pueden cambiar la vidaLa vida me ha trazado diversos caminos, entre ellos: el Psicoanálisis y la Narración Oral. Como psicoanalista, trato de aliviar el dolor anímico y hacer surgir al sujeto de cada historia de vida entregada por las voces de los Otros desde antes de nacer.Como narradora oral, trato de contar las historias de vida, la propia y la de los otros, entramadas en los cuentos que la humanidad ha engendrado para aliviar el dolor de existir. ¿Qué es nuestra vida sino lo que podemos contar de ella?"

Patrícia Orr

A velha e os lobos

Uma velha tinha muitos netos, um dos quais estava ainda por baptizar. Um dia a boa velhinha saiu a procurar um padrinho para o seu netinho e no caminho encontrou um lobo, que lhe perguntou:" -Onde vais tu, velha?"- ao que ela respondeu:"-Vou arranjar um padrinho para o meu neto.""-Ó velha, olha que eu como-te!""- Não me comas que quando se baptizar o meu menino, dou-te arroz-doce."Foi mais adiante e encontrou outro loboque lhe fez a mesma pergunta e ela deu-lhe a mesma resposta. Depois encontrou um homem que lhe perguntou o que ela ia fazer e, como ela lhe respondesse que ia procurar um padrinho para o seu neto, ele ofereceu-se logo para isso. Depois a velha contou-lhe o encontro que tinha tido com os lobos e o homem deu-lhe uma grande cabaça e disse-lhe que se metesse dentro dela que assim iria ter a casa sem que os lobos a vissem. A velha meteu-se na cabaça e esta começou a correr, a correr, até que encontrou um lobo que lhe perguntou: "- Ó cabaça, viste por aí uma velha?""- Não vi velha, nem velhinha;Não vi velha, nem velhão;Corre, corre, cabacinhaCorre, corre, cabação."Mais adiante encontrou outro lobo que perguntou também:"- Ó cabaça, viste por aí uma velha?""- Não vi velha, nem velhinha;Não vi velha, nem velhão;Corre, corre, cabacinhaCorre, corre, cabação."A velha, julgando que já estava longe dos lobos, deitou a cabeça fora da cabaça, mas os lobos, que a seguiam, saltaram-lhe em cima e comeram-na.

Versão do conto A velha e os lobos, recolhida na região de Coimbra

Mestre Pádua




O olho vê, a lembrança revê e a imaginação trevê...
É preciso trever o mundo!





A LENDA DO CONTADOR DE HISTÓRIAS

http://www.youtube.com/watch?v=dg7llvf7Okc

terça-feira, 19 de junho de 2007

sexta-feira, 15 de junho de 2007

O FAZEDOR DE LUZES

O FAZEDOR DE LUZES

Estou deitada, debaixo do céu estreloso, lembrando meu pai. Nesse há muito tempo, nós nos dedicávamos, à noite, a apanhar frescos. O céu era uma ardósia riscada por súbitos morcegos, desses caçadores de perfumes.
_ Pai, eu quero ter uma estrela!
_ Estrela, não: é muito custosa de criar.
Eu insistia. Queria possuir estrela como as outras meninas tinham brinquedos, bonecos, cachorros. Aqui, no rés da terra, eu não podia ter nada. Ao menos, lá no infirmamento, se autenticassem minhas posses.
_ Mas, pai: o senhor diz que faz criação de estrelas.
_ Fazia tive de entregar todas. Eram dívidas, paguei com estrelas
_ Eu sei que sobrou uma.
Meu pai não respondia nem sim nem talvez. Era um homem vagaroso e vago, sabedor de coisas sem teor. Dedicava-se a serviços anónimos, propício a nenhum esforço. Dizia:
Sou como o peixe, ninguém me viu transpirar.
e me alertava: veja o musgo, que é o modo do muro dar planta. Quem o rega, quem o aduba? nada, ninguém. Há coisas que só paradas é que crescem.
- É, minha filha: aprenda com o mineral. Nimguém sabe tanto e tão antigo como pedra.
Cuidava-me sozinha, orfã eu, viúvo ele. Ou seria ele o orfão, sofrendo do mesmo meu parentesco, o falecimento de minha mãe? Perguntas dessas são incorrigíveis. quem sabe é quem nunca responde. Na realidade, meu nascimento foi um luto para meu pai. minha mãe trocou de existir em meu parto. Me embrulharam em capulana com sangues todos misturados, o meu novinho em gota e o dela já em cascata para o abismo. Esse sangue transmexido foi a causa, dizem, de meu pai nunca mais compridar olho em outra mulher. Em minha toda vida, eu conheci só aquela exclusiva mão dele, docemente áspera como a pedra. Aquele côncavo de sua mão era minha gruta, meu reconchego. E mais um agasalho: as estranhas falas com que ele me nevoava o adormecer.
_ Você escuta os outros se lamentarem de seu pai.
_ Não escuto, não-menti.
_ Dizem eu não faço nada na vida, não faço nem ideia.
E prosseguia, se perdoando:
_ Mas eu, minha filha, eu existo mas não sei onde. Nessa bruma que fica lá, depois do estrangeiro, nessa bruma é que você me vai encontrar a mim, exacto e autêntico. Lá fica minha residência, lá eu sou grande, lá sou senhor, até posso nascer-me as vezes que eu quiser. eu não tenho um aqui.
_ Não diga assim, pai.
_ Havia de ver, minha filha, lá eu não sou como neste lado: não cedo conversa a um qualquer. pois, nesse outro mundo, filhinha, eu tenho o mais requerido dos serviços: sou fabricador de estrelas. Sim, faço estrelas por encomenda.
_ Verdade pai?
_ Verdade filha. Pergunte a Deus, sou até fornecedor do Paríso.
Voltámos ao quintal, deitávamos a assistir ao céu. Eu já adivinhava, meu velho não suportava silêncio. E, num gesto amplo, ele cobria o inteiro presépio do horizonte.
_ Tudo isso fui eu que criei.
Eu estremecia, gostosa de me sentir pequenina, junta a esse deus tão caseiro. E lá, pai, eles nos vêem a nós? nada filha, não nos vêem. A luz daqui está suja, os homens poeiraram isto tudo.
_ Mas ela nos vê, lá nessa estrela onde foi?
O pai não respondia. Ele que tinha palavra para tudo, tropeçava sempre no mesmo silêncio. Minha mãe: dela não se mencionava nada. Ela não era nem criatura, nem coisa, nem causa. Nem sequer ausência. E não sendo nem sujeito nem passado, ela escapava a ser lembrada. Meu velho fugia a sete corações do assunto da saudade. Como daquela vez que a mão, veloz, enxugou o rosto.
_ Você nunca olhe o céu enquanto estiver chorando. Promete?
_Então, me dê uma estrela, pai.
_ Nada, as estrelas não podem ser dadas. nunca veja a noite por través da lágrima-insistiu ele, sério.
Depois, quando se ergueu lhe veio uma tontura, sua mão procurou apoio no meio de dançarinas visões. Eu o amparei, raiz segurando a última árvore.
_ Está doente, pai?
_Qual doente?! É a terra é uma mulher muito ciumenta.
E outras vezes ele voltou a tontear. Até que uma noite, após estranho silêncio, ele me disse, esquivo, quase tímido:
_ Vá lá. escolha uma...
_ Posso, pai?
E fingi apontar para uma estrela, entre os mil cristais do céu. Ele fez conta que anotava o preciso lugar, marcando no quadro negro o astro que eu apontara. me ajeitou a mão na minha fronte e me puxou para o seu peito. Senti o bater do seu coração.
- Escolheu bem, filha.
E explicou: aquela que eu indicara seria a luz onde ele iria morrer. Ninguém lembra o escuro onde nasceu. Todos viemos de fonte obscura. por isso, ele preferia a claridade dessa estrela ao escuro de um qualquer cemitério. Então, por primeira vez, meu pai fez referência àquela que me anteriorou:
_ É nessa estrela que ela está.
Agora, deitada de novo nas traseiras da casa, eu volto a olhar essa estrela onde o meu pai habita. lá onde ele se inventa de estar com a sua amada. E em meus olhos deixo aguar uma tristeza. A lágrima transgride a ordem paterna. Nesse desfoco, a estrela se converte em barco e o céu se desdobra em mar. Me chega a voz de meu pai me ordenando que seque os olhos. tarde de mais. Já a água é todas as águas e eu me vou deitando na capulana onde as primeiras mãos me seguraram a existência.
Na Berma de Nenhuma Estrada e outros contos
MIA COUTO

quinta-feira, 14 de junho de 2007

ANNIE LENNOX

PRIMEIRO AMOR de Samuel Beckett


"Naquela altura eu não percebia as mulheres. Aliás agora também não. Nem os homens. Nem os animais. O que percebo melhor, e não é dizer muito, são as minhas dores.

"Samuel Beckett, Primeiro Amor

Cubismo de Almada










ALMADA NEGREIROS






Almada foi muito influenciado pela crítica. Recebeu-a sempre como estímulo à sua própria evolução. É assim que, na sua primeira exposição individual, recebe a crítica que porventura mais o motivou na procura da perfeição, a do seu amigo Fernando Pessoa que considerou a pintura de Almada:




"capaz de apanhar momentos de espuma, mas sem consciência de que essa espuma é orla dum mar antigo, vasto e misterioso"






Almada, reconheceu com uma modéstia comovente a falta de consistência das suas primeiras obras:



"De todas as profissões a que chega mais tarde à vida é a de pintor, na necessidade de esperar primeiro por si próprio para que a pintura aconteça"




O desenho foi um alicerce incontornável na obra plástica de Almada Negreiros que o considerava como o caminho natural que conduz à pintura.



"Tudo o que contém clareza de entendimento tem a função do desenho"




quarta-feira, 13 de junho de 2007

ALMADA NEGREIROS


A Maternidade, Almada Negreiros

EVELYN DAVIDDI








Ilustradora Italiana

GIULIA DE ZULIANI

"La poesia è sicuramente una forma di salvezza perché di fronte al dolore si può reagire in tre modi: o abbandoni la vita sociale o diventi autolesionista e fai male anche agli altri (con questo duplice atteggiamento) o ti rifugi nell'arte. ..."

terça-feira, 12 de junho de 2007

NÓS DE NOVO


VINICIUS DE MORAES



Deve ser amor

Sim, sinceramente, amor
Eu não sei o que se passa em mim
É assim como uma dor
Mas que dói sem ser ruim
Sim, é ter no coração
Sempre uma canção
É tão embriagador
Deve ser, sim
Deve ser amor

E HÁ COISA MELHOR?

NÓS E OS LIVROS
NÓS A DARMOS ALMA
À NOSSA BIBLIOTECA
O NOSSO CONVIVIO
A NOSSA AMIZADE
A NOSSA VONTADE QUE TUDO DESSE CERTO...
E DEU!






VINICIUS DE MORAES

Tanto faz...
Como diria o grandeVinicius de Moraes numa carta a Tom Jobim:
...Lembra que tempo feliz
Ah, que saudade
Ipanema era só felicidade
Era como se o amor doesse em paz....
É, meu amigo, só resta uma certeza
É preciso acabar com essa tristeza
É preciso inventar de novo o amor

JOSÉ JORGE LETRIA


"A árvore do abraços"
- conto de José Jorge Letria, Ilustraçãos de Joana Quental, edições quasi
TODOS P'RÀ MESA
Jorge Listopad e Manuela Bacelar

Mais de uma dezena de estimulantes contos do conhecido escritor checo, a residir em Portugal, belíssimamente ilustrados por Manuela Bacelar.

U2 With or without you

AMANDA MARSHALL

"É ao livro, à palavra escrita, que atribuímos a maior responsabilidade na formação da consciência do mundo das crianças e dos jovens. Apesar de todos os prognósticos pessimistas, e até apocalípticos, acerca do futuro do livro (ou melhor, da literatura), nesta nossa era da imagem e da comunicação instantânea, a verdade é que a palavra literária escrita está mais viva do que nunca.

"in: Literatura Infantil, Nelly Novaes Coelho, Moderna

Leiam acerca deste tema o apontamento escrito por José Pacheco Pereira no Abrupto. Vale a pena.
http://www.abrupto.blogspot.com

MIA COUTO


ilustrado por Danuta

Esta é uma das belíssimas páginas de "O Gato e o Escuro" de Mia Couto.

LUISA DUCLA SOARES


ilustrações belíssimas de Fátima Afonso

A PRINCESA DA CHUVA






«“Não há bela sem senão”


diz a antiga expressão!


Mas o que acontece quando não há


azar que a coragem não enfrente?


Será possível transformar uma


maldição em benção?»








segunda-feira, 11 de junho de 2007

JOSÉ MENA ABRANTES

O bebê e a mãe

crescera dentro
da mãe
como todos os bebês



uma faca grande
talvez suja
como tantas vezes acontece
cortara
o cordão da vida
que o ligava
à mãe



uma manhã
aninhado
no calor das costas
da mãe
acordou de repente



a mãe corria


depois a mãe caiu
e ele com ela
a mãe ficou
quieta
muito quieta
e ele
chorou alto



sentiu então
que o uniam de novo
à mãe



com uma faca grande
talvez suja
como tantas vezes acontece

sexta-feira, 8 de junho de 2007

ONTEM O SOL BRINCOU ÀS ESCONDIDAS


O AMOR É... josé jorge letria


Tirei-a ontem dia 7! Eu e o meu filho!!!


O amor é
ter uma boa causa
para não deixar de amar

O AMOR É... josé jorge letria

O amor
é uma ponte de luz
entre mim e ti

O AMOR É... josé jorge letria

O AMOR É
UMA CASA ONDE A TERNURA
QUER MORAR SEMPRE.

A CASA QUE O AMOR CONSTRUIU

A CASA QUE O AMOR CONSTRUIU
Esta história é verdadeira. Passou-se em França depois da Primeira Guerra Mundial, durante a qual uma aldeia inteira foi destruída pelos combates.

Marie acordou sobressaltada na escuridão cerrada e sentiu o cheiro familiar da sujidade. O seu pequeno corpo estremeceu com o frio húmido. Enquanto se levantava para arranjar a cama feita de trapos e de serapilheira no chão sujo, o pesadelo que lhe tinha abalado o sono pairava sobre ela como uma nuvem negra. Era todas as noites o mesmo pesadelo.
Começava sempre com um sonho agradável. Via a sua aldeia francesa muito amada. Depois via-se a sair com a Mãe e a Avó da casa velha e aconchegante, e a passar pela rua estreita. Debaixo de quase todas as janelas, havia floreiras garridas cujas flores se agitavam ao vento. O Sol resplandecia no campanário da igreja. Mas havia uma reverberação assustadora que vinha na direcção da aldeia: a reverberação das armas. Marie estremeceu de novo, à medida que sentia que o sonho feliz se tornava um terrível pesadelo. Vinham-lhe à cabeça recordações assustadoras. Aterrorizadas, a Mãe e a Avó tinham-na arrastado para as árvores. Aí, deitaram-se por terra. Soldados de uniforme azul passavam em colunas. Armas! Lutas! Explosões e gritos! Fogo! Quando tudo acabou, a aldeia deixara de existir.
À medida que a guerra se afastava, Marie, a Mãe e a Avó vasculharam, em lágrimas, o cascalho em que a sua casa se transformara. A pequena família mudou-se para uma antiga cave. “Como toupeiras nos buracos do chão”, pensara Marie com tristeza.
Enfiou-se nos trapos e voltou a cair num sono irregular. Na sua cabeça, os soldados continuavam a marchar. Depois dos soldados franceses em uniformes azuis, tinham vindo os soldados alemães em uniformes verdes. Para alívio de todos, depressa se foram embora. Depois vieram os uniformes caqui dos americanos. Os americanos riam-se e entregavam moedas francesas aos miúdos ávidos. Mas, quando partiram, a aldeia continuou em ruínas.
Quando Marie acordou de novo, o Sol brilhava através das fendas nas tábuas velhas que serviam de tecto. Ao ouvir sons estranhos, sentou-se num ápice. Algo de diferente estava a passar-se naquela manhã. Perguntava-se que sons seriam aqueles.
― Mãe, será que os soldados voltaram? ― perguntou ansiosamente.
― Não, minha querida. Vai lá acima ver quem chegou.
A Mãe parecia estranhamente contente.
Marie atirou com os trapos e subiu os degraus periclitantes da cave. Viu de imediato que outros homens, de uniforme cinzento, tinham vindo para a aldeia.
― Oh, Mãe! ― gritou excitada depois de os observar por algum tempo. ― Os soldados trazem serras e martelos, em vez de armas. Estão a construir casas.
Marie pensou que eram soldados porque traziam uniformes. Mas não eram soldados. Eram trabalhadores britânicos e americanos.
Marie pensou depressa. Desceu os velhos degraus a correr e pegou numa meia velha onde estavam seis cêntimos franceses que os soldados americanos lhe tinham dado. Era o único dinheiro que a sua família tinha. Enquanto voltava a subir as escadas, um misto de esperança e ansiedade fazia-a tremer a cada degrau. Correu para o chefe dos homens vestidos de cinzento.
Timidamente, estendeu a meia e mostrou-lhe os seis cêntimos.
― O senhor pode construir-me uma casa por seis cêntimos? O homem pareceu surpreendido e pediu-lhe para repetir a pergunta. Quando finalmente compreendeu, não se riu nem sorriu, mas respondeu muito seriamente:
― Bem, Menina, veremos o que se pode fazer. Não disse “Sim”, mas também não disse “Não”. Marie montou guarda todos os dias para ver o que aconteceria.
Uma por uma, foram-se construindo casas pequenas para outras pessoas. As casas eram pequenas e simples mas, para Marie, eram bonitas. Como ansiava por um chão de madeira limpo para varrer e um belo telhado de telhas vermelhas para impedir a chuva de entrar!
Será que se iriam embora sem construir uma casa para a família dela? Enquanto esperava e observava, a cave parecia-lhe mais escura e húmida do que nunca.
Quando estava quase a desistir de esperar, Marie obteve a sua resposta. A resposta era “Sim”. A casa de Marie, tal como as outras, foi construída em apenas três dias. Para Marie era a casa mais bela do mundo.
No dia em que acabaram de a construir, o chefe dos homens de cinzento entregou, com muita cerimónia, a chave da porta de entrada a Marie, dizendo: ― Menina, a sua chave.
Marie pegou nela e abriu oficialmente a porta, enquanto a Mãe, a Avó e toda a aldeia a observavam.
Parou de repente, como se se recordasse de algo. Prometera-lhes os seis cêntimos pela casa, por isso esta ainda não era propriedade sua.
Voltou rapidamente a descer os velhos degraus da cave e, quando voltou, dirigiu-se ao chefe dos homens de cinzento. Agora que estava acabada, a casa parecia grande e os seis cêntimos pareciam pouco. Mas era tudo o que ela tinha, e foi-os contando à medida que os colocava na mão do chefe.
Será que chegava? Quase nem se atrevia a olhar para o homem.
Ele sorriu-lhe e disse solenemente (em Francês, claro):
― Obrigado, Menina, mas quatro cêntimos são suficientes ― e devolveu-lhe dois cêntimos.

William W. Price (Texto adaptado)
Lightning candles in the dark
Philadelphia, FGC, 2001
Tradução e adaptação

PEQUENAS PEDRINHAS BRANCAS

Pequenas pedrinhas brancas… para pequenos polegares pensantes!

A história é a guloseima, antes da longa separação da noite. É como uma lampadazinha que a criança poderá meter debaixo do travesseiro. Uma ideia, uma imagem para afagar, para chuchar, para remexer em todos os sentidos. É o que os bebés pressentem quando se lhes dá um livro, que eles viram de pernas para o ar vezes sem conta! “Sim”, dizem na sua linguagem. “Há alguma coisa de essencial e de misterioso. O livro é mágico.”
Lendo uma história aos nossos filhos, fornecemos-lhes uma mão cheia de pedrinhas brancas – que os pássaros não comerão. Levá-las-ão consigo, ao longo do caminho, rumo à floresta obscura. Perdidos no escuro, assolados de perguntas, dúvidas e angústias, saberão desenvencilhar-se. E tirar proveito delas.

A CASA FEITA DE SONHO


Leve como uma pluma,
alta como uma torre,
quente como um ninho
e doce como o mel,
assim imaginei
desde pequeno
a minha casa…

Mais tarde, quando me encontrei só no mundo, como não tinha dinheiro, resolvi construí-la com as próprias mãos. Fiz primeiro a minha casa de papel, que é um material barato.
E assim que ficou pronta, vieram todos os ventos da Terra e levaram a minha casa de papel, leve como uma pluma…
Fiquei sem casa, mas não desisti. E fiz a minha casa à beira-mar, com areia da praia, que é um material barato.
Mal estava pronta, vieram todas as marés do mundo e levaram a minha casa de areia, alta como uma torre…
Deu-me vontade de desistir, mas eu precisava de uma casa, e sobretudo não podia abandonar o meu sonho.
E resolvi fazer a minha casa de madeira, que é um material barato. Cortei-a dos bosques, com as próprias mãos! Ficou linda!… Escondida entre a folhagem…
Mas ainda mal a tinha acabado, vieram todos os fogos do céu e queimaram a minha casa de madeira, quente como um ninho… Chorei sobre as cinzas, como se chora uma pessoa querida que morreu.
Mas, mesmo assim, não desisti. E resolvi fazer a minha casa de açúcar…
Mas o açúcar não é um material barato! Pois não…
Mas eu precisava de uma casa, e sobretudo, não podia abandonar o meu sonho.
Trabalhei, lutei, passei fome, para juntar o açúcar suficiente…
E quando a minha casa estava pronta — eram de açúcar as paredes, o chão, o tecto, os móveis, as portas e as janelas — vieram todos os bichos da Terra e devoraram a minha casa de açúcar, doce como o mel…
Fiquei sem casa. E desisti de construí-la com as próprias mãos…
Perguntam-me onde moro… Onde moro eu? Sei lá!… Vou pelo mundo, aqui, além, no bosque, à beira-mar… Perguntam-me se não tenho casa… Tenho, sim! Eu podia lá abandonar o meu sonho!…
Resolvi imaginá-la. Num sítio onde não chega o vento, nem o mar, nem o fogo, nem os bichos da Terra.
Fiz a minha casa com o meu próprio sonho. Ficou linda!
Leve como uma pluma, alta como uma torre, quente como um ninho e doce como o mel…



Ricardo Alberty
A casa feita de sonho
Melhoramentos de Portugal, 1991

PEDAGOGIA WALDORF

CONTOS DE FADAS À LUZ DA PEDAGOGIA WALDORF

Obedecendo aos princípios da pedagogia Waldorf, os contos de fadas apresentados em marionetas na Casa das Fadas são muito mais do que um espectáculo de entretenimento.

O ritmo de desenvolvimento das crianças, segundo esta pedagogia, é sagrado e deve ser respeitado. Se tudo tem um timming, os contos de fadas não fogem à regra. «Como defende Steiner [autor dos pressupostos teóricos em que se baseia a pedagogia Waldorf], os contos de fadas são incontornáveis a partir dos três, quatro anos.

Até essa idade, incidimos nas histórias da natureza, menos elaboradas, com muito ritmo e lenga-lengas», explica Cláudia Valentim. «Mas até aos sete anos, os contos de fadas são muito importantes e é bom que as crianças tenham contacto com eles até essa idade, pelo menos, de preferência até aos 10.

Hoje, há muita tendência para apressar as crianças a crescer. Há pais e educadoras que dizem coisas como "Já és crescido para essas histórias" ou "Essas histórias são para bebés". Isso é um erro crasso», alerta.

Além da importância de crescer sem pressas e livre da competição, a pedagogia Waldorf sublinha o valor dos conteúdos dos contos de fadas, afirmando que eles são o tesouro mais precioso da Humanidade.

«É que estes contos falam de todas as verdades universais, falam-nos individualmente de cada assunto que nos preocupa em cada fase da vida, têm respostas para o que sentimos e podem ligar-nos ao nosso lado espiritual», explica Cláudia Valentim.

«Há respostas a nível de valores, de ética, de construção da personalidade, respostas que vão contribuir para a formação de um ser humano feliz, centrado e com consciência de si próprio. Os contos de fadas são um alimento para a vida», resume.

A criança identifica-se sempre com uma personagem da história, consoante a fase pela qual está a passar, tal como pode associar outras pessoas importantes da sua vida a outras personagens. Para que essa identificação seja mais fácil, as marionetas, segundo a pedagogia Waldorf, não devem ter rosto. Assim, é mais fácil para a criança imaginar.

«De todas as crianças que já assistiram aos nossos espectáculos, não houve nenhuma que alguma vez nos tivesse questionado pelo facto de os bonecos não terem olhos, nem boca, nem nariz», conta Cláudia Valentim. «Para elas, isso é aceite pacificamente. Os bonecos são bonitos, têm roupas coloridas. Os educadores sim, fazem essa questão, faz-lhes falta o rosto.

» Feitas em materiais cem por cento naturais, as marionetas são importantes porque é importante haver imagens às quais associar a história. «Isso é fundamental para as crianças. Tem sempre de haver um suporte de imagem, por isso é que as crianças pedem sempre para ver as ilustrações. Estas imagens não conseguem dar a mesma vivência de um teatro de marionetas, mas claro que também é importante contar estas histórias em casa», defende Cláudia Valentim.

Importante também é escolher uma boa versão (Charles Perrault, Irmãos Grimm, Anderssen) e estar disponível. O que é muito diferente de ler a despachar. «Não se pode ler um conto de fadas com pressa ou cheio de stress. É preciso gostar de o fazer, é preciso estar de alma e coração», alerta Cláudia. «Caso contrário, é preferível ler outro tipo de história», recomenda.

AS CRIANÇAS TÊM DIREITO ÀS VERSÕES ORIGINAIS... E A VIVEREM FELIZES PARA SEMPRE

Existem hoje três "atitudes-tipo" em relação aos contos de fadas: rejeição total, porque falam de um mundo de fantasia e não estimulam a racionalidade; aceitação total com abertura de espírito para que os contos de fadas possam falar às crianças; e uma aceitação contida, com algumas dúvidas sobre os benefícios do seu conteúdo.

São os pais que têm esta atitude mais dúbia que caem na tentação alterar o fio da história. Põem a avozinha dentro do armário, em vez assumir que foi comida pelo lobo, dizem que a rainha mandou o caçador levar a Branca de Neve embora, em vez de a matar, ou que a Gata Borralheira não tinha mãe porque ela foi trabalhar para fora.

Ora, todos os especialistas são unânimes em afirmar que as crianças não devem ser poupadas à violência que existe nestes contos e, mais, que esta violência é estruturante. A vida não é só cor-de-rosa. «A dor e a maldade fazem parte da vida e é bom que a criança se familiarize com essa realidade», defende Cláudia Valentim.

«Quando se omitem partes da história está a privar-se a criança de elementos importantes. A criança também tem o seu lado mau, também acontece ser um bocadinho "mazinha". Se ela sentir que também há nas histórias quem passe por esses processos, quem falhe, ela vai identificar-se», explica.

Claro que tudo isto são processos inconscientes. E os especialistas também são unânimes quanto à necessidade de não ler a história com objectivos didácticos, sublinhando, no final, as "lições" que interessa aos pais passar. As crianças apreendem intuitivamente as mensagens relevantes. Aos pais basta-lhes estar disponíveis e acreditar no poder transformador da história.

"Viver feliz para sempre" não tem de ser um exclusivo dos contos de fadas. A fantasia que se encontra nestas histórias contribui para que as crianças cresçam mais optimistas, sensíveis e confiantes. Afinal, acreditar que se pode viver feliz para sempre é determinante para que também a vida real tenha muitos finais felizes.

CONSELHOS PRECIOSOS PARA CONTADORES DE CONTOS CONVICTOS

- Ler de alma e coração (nunca ler com pressa)

- Associar imagens aos contos

- Nunca deturpar a história, com o intuito de "poupar" a criança

- Nunca pedir à criança para falar do que ouviu ou fazer um desenho sobre a história

- Nunca cair na tentação de esmiuçar a «moral da história». A criança absorve intuitiva e inconscientemente as mensagens relevantes para si,

- Nunca ridicularizar os contos ou as personagens. As fadas, as princesas e até as bruxas merecem todo o respeito!

- Conte o mesmo conto tantas vezes quantas a criança pedir. Segundo a pedagogia Waldort, a mesma história é contada 15 dias seguidos.