sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Meninos de todas as cores

Era uma vez um menino branco chamado Miguel, que vivia numa terra de meninos brancos e dizia:
É bom ser branco
porque é branco o açúcar, tão doce,
porque é branco o leite, tão saboroso,
porque é branca a neve, tão linda.
Mas certo dia o menino partiu numa grande viagem e chegou a uma terra onde todos os meninos eram amarelos. Arranjou uma amiga chamada Flor de Lótus, que, como todos os meninos amarelos, dizia:
É bom ser amarelo
porque é amarelo o Sol
e amarelo o girassol
mais a areia da praia.
O menino branco meteu-se num barco para continuar a sua viagem e parou numa terra onde todos os meninos são pretos. Fez-se amigo de um pequeno caçador chamado Lumumba que, como os outros meninos pretos, dizia:
É bom ser preto
como a noite
preto como as azeitonas
preto como as estradas que nos levam para
toda a parte.
O menino branco entrou depois num avião, que só parou numa terra onde todos os meninos são vermelhos.
Escolheu para brincar aos índios um menino chamado Pena de Águia. E o menino vermelho dizia:
É bom ser vermelho
da cor das fogueiras
da cor das cerejas
e da cor do sangue bem encarnado.
O menino branco foi correndo mundo até uma terra onde todos os meninos são castanhos. Aí fazia corridas de camelo com um menino chamado Ali-Babá, que dizia:
É bom ser castanho
como a terra do chão
os troncos das árvores
é tão bom ser castanho como um chocolate.
Quando o menino voltou à sua terra de meninos brancos, dizia:
É bom ser branco como o açúcar
amarelo como o Sol
preto como as estradas
vermelho como as fogueiras
castanho da cor do chocolate.
Enquanto, na escola, os meninos brancos pintavam em folhas brancas desenhos de meninos brancos, ele fazia grandes rodas com meninos sorridentes de todas as cores.

Luísa Ducla Soares

Luisa Ducla Soares

O Soldado João

Era uma vez um soldado chamado João. Vinha de sachar milho, de regar cravos, de semear couves e manjericos.
Agora, toca a marchar, de espingarda ao ombro, mochila às costas, botas de cano, farda a rigor.
Pelos campos fora, o soldado João era a vergonha dos batalhões. Trazia uma flor ao peito, punha as mãos nas algibeiras, coçava o nariz, não acertava o passo. E, para cúmulo, assobiava ou cantava modinhas da sua aldeia.
Bem lhe ralhava o sargento, o ameaçava o capitão, o castigava o general.
O soldado João continuava a marchar, feliz e desengonçado, como se fosse à feira comprar gado ou ao mercado vender feijão.
Mas tanto, tanto marchou o soldado João, que chegou à terra da guerra.
Todos os soldados carregaram as espingardas e fizeram pontaria. Mas o soldado João achou indelicado não ir cumprimentar os colegas da outra banda. Pousou a arma, saltou a trincheira, avançou estendendo a mão.
Então, os outros soldados, espantados, estenderam também a mão.
— Fogo! — gritava o sargento.
— Disparem! — mandava o capitão.
— Atirem! — ordenava o general.
Mas os soldados eram tantos que demorava muito tempo a cumprimentá-los. Foi o sargento buscar o soldado João, dizendo:
— Rapaz, não te lembras de que te ensinei que a guerra é para matar? Vou pôr-te a corneteiro, já que não tens jeito para atirador.
O soldado João pegou na corneta, ei-lo a soprar, e logo o fandango ecoou pelos campos fora, convidando à dança.
Sapateava a tropa, rodopiava, batia palmas.
— Alto! — gritava o sargento.
— Basta! — mandava o capitão.
— Parem! — ordenava o general.
Arrancou o sargento a corneta ao soldado João e, zangado, explodiu:
— Vais para cozinheiro do exército. Ao menos aí não empatarás a guerra.
Mal chegou à cozinha, foi buscar café. Arrastava pelas fileiras, fumegando, o enorme panelão, apetitoso, perfumado.
Aproximava-se de cada soldado, tirava-lhe o capacete para fazer de malga, despejava-lhe uma concha de café. Amigos e inimigos, todos se deliciavam com tão inesperado pequeno-almoço.
— Ao vosso lugar! — gritava o sargento.
— A postos! — mandava o capitão.
— Perfilar! — ordenava o general.
Tiraram a panela ao soldado João, enrolaram-no numa bandeira da cruz vermelha, dizendo:
— Já não és atirador, nem corneteiro, nem cozinheiro. Daqui por diante, és enfermeiro militar.
Mal se viu na nova função, ei-lo a correr à procura de feridos.
Viu um tenente com um olho negro e foi tratá-lo.
Viu um furriel com uma picada de abelha e, num instante, lhe arrancou o ferrão.
Notou que os dois generais inimigos coxeavam ligeiramente, descalçou-lhes as botas e pôs-se a tirar-lhes os calos.
Então, o incrível aconteceu.
Os dois generais levantaram-se ao mesmo tempo e condecoraram-no com duas luzentes medalhas de ouro.
Como era noite, acharam que já passara o tempo da guerra, apertaram as mãos e partiram em paz.
O soldado João sete dias andou até chegar à sua aldeola, onde de novo sacha milho, rega cravos, semeia couves e manjericos.


Luísa Ducla Soares
O soldado João


Porto, Editora Civilização, 2002

Reflexões de um psiquiatra


As dádivas da vida

As violências, as situações negativas, as dificuldades encontradas ao longo da vida parecem deixar mais vestígios no nosso espírito, na nossa memória, no nosso corpo ou na nossa história do que os acontecimentos felizes que possamos ter vivido.
Depositam-se no fundo do ser, abrem fendas e revelam falhas. Inscrevem-se como feridas, como páginas amarrotadas ou rasgadas da nossa história que nos apressamos a contornar, a pôr de lado, a esquecer.
Tudo se passa como se o nosso plano de consciência ficasse cativo de uma percepção clivada e fundamentalmente dual da realidade: de um lado tudo o que é bom, tudo o que está conotado com o prazer, a gratificação e a segurança (todas as mensagens desta natureza são cultivadas, granjeadas, procuradas ou até endeusadas numa ideologia positivista); do outro lado tudo o que gera desprazer, confronto com o inaceitável, com a insegurança, tudo aquilo que será negado, repudiado, dividido a meio, e que, no entanto, permanece nos traços profundos que deixa em nós.
Tudo se passa como se não tivéssemos aprendido a descodificar as mensagens da vida contidas em cada acontecimento, para lá da sua conotação imediata de sofrimento, de obstáculo ou de dificuldade; como se não soubéssemos captar, e menos ainda, acolher os fenómenos gratificantes, os factos positivos, as oferendas da vida, escondidas, mas presentes… em tudo o que nos acontece.
Os Índios da costa oeste do Canadá afirmam que “qualquer acontecimento, qualquer encontro, esconde uma bênção”, desde que aceitemos descobri-lo como tal.
Uma tal disponibilidade de acolhimento, uma tal disposição supõe que possamos entrar num tipo de sintonia particular, numa harmonia, no sentido vibratório do termo, entre aquilo que nos chega da vida e a forma como o vamos captando, recebendo, integrando e assimilando.
Uma rapariga tinha ganho dois lugares gratuitos para um concerto de jazz oferecidos por um grande jornal diário suíço. Fora recebida no salão VIP, agraciada com muitos presentes: saco, disco, esferográfica… No intervalo, para ir beber um refresco, pousa o porta-moedas junto da cadeira, juntamente com o copo vazio, para ficar com as mãos livres e saborear uma barra de chocolate; depois, na confusão do momento, esquece-se do porta-moedas e do saco. Ao voltar para casa, dá-se conta das coisas perdidas: dinheiro, documentos, cartões de crédito. Fica desnorteada, imagina o pior e começa a recriminar-se, tanto pelo que tinha feito como por aquilo que deixara de fazer… Depois, caindo em si, imagina que alguém poderá ter encontrado o porta-moedas, e sobretudo os documentos, e então consegue passar o resto da manhã mais animada. Disse mais tarde: “Eu, que acabava de perder tanta coisa, sentia-me sintonizada com o dar.” No final da manhã, o telefone toca e ouve alguém anunciar-lhe que tudo fora encontrado intacto: porta-moedas, documentos, cartões de crédito e o dinheiro. Tratava-se de um jovem casal que, tendo assistido ao mesmo concerto, vira o porta-moedas e o saco esquecidos debaixo da cadeira. Acrescentou: “Dali em diante, tornámo-nos próximos. Senti uma corrente de afinidades muito forte entre mim e aquele casal. Foi assim que aqueles amigos entraram na minha vida.”
Quando deparamos com aborrecimentos, arrelias ou contrariedades, quando temos um acidente, quando a doença surge, quando um ser amado nos deixa, é-nos muito difícil, num momento inicial, perceber em que é que estes acontecimentos podem ser positivos, em que é que eles são portadores de uma dádiva! Os factos em si, a violência que os acompanha irritam-nos, revoltam-nos, violentam-nos e desestabilizam-nos. Provocam atitudes de reacção ou de defesa. Por vezes até nos ferem, martirizam-nos, podem atingir-nos no mais fundo e destruir uma parte essencial de nós mesmos. É necessário um regresso a nós próprios, um trabalho de interiorização e de tomada de consciência antes de se poder encontrar a chama viva da nossa frágil existência, a abertura possível e a mudança depois do período de insegurança, antes de descobrirmos o milagre que nos é oferecido naquilo que, num primeiro instante, só deixara antever a violência, o caos, a injustiça ou a confusão inaceitável.
“Quando o meu namorado me deixou, julguei que a minha vida tinha acabado. Achava que já não tinha qualquer valor nem utilidade à face da terra, que já não tinha nenhuma razão para viver. E quando uma amiga me propôs que fosse para junto dela, para o estrangeiro, fi-lo por ela, pelo menos assim o julgava. Seis meses depois, fazia-o por mim, ao começar um curso. Estou convicta de que não seria a mulher que hoje sou se não tivesse dado ouvidos aos sinais que me chamavam para fora de mim, para fora do meu país.”
“Esta doença foi uma verdadeira revelação. Mudei o meu modo de vida, a forma de me vestir, os meus passatempos transformaram-se numa festa. É certo que perdi alguns amigos, mas encontrei outros.”
Um acontecimento traumático pode vir a ser revelador de potencialidades inexploradas, de aspectos de nós mesmos ainda por descobrir.
Uma crise, um conflito agudo, podem ser catalisadores de energias dispersas, permitindo mobilizar riquezas desconhecidas, despertar potencialidades inesperadas.
A vida contém muitos presentes. O mecanismo parece ser o seguinte: os sinais positivos, quando são recebidos e tidos como tal, dão energia, e essa energia transforma-se de uma certa forma em sensação de bem-estar, em amor. Pelo contrário, os sinais negativos podem ser captados como violências que despertam feridas que, por sua vez, geram sofrimento. O sofrimento, o ressentimento desvitalizam, consomem energia.
Deveríamos, então, optar por uma aprendizagem das relações humanas que nos permitisse acolher, com gratidão, a vida contida em todo e qualquer acontecimento, em qualquer encontro, em toda a partilha. Pois é disso que de facto se trata. Estar vivo é acolher a vida. Nós não recebemos a vida só no momento da concepção ou do nascimento, como um capital adquirido e que só bastaria gerir ao longo da existência terrestre. Penso que podemos acolher, dinamizar a vida que vem ao nosso encontro sob todas as suas formas, tal como se nos apresenta no dia-a-dia de uma existência.
Em qualquer encontro, através de estímulos que nos chegam da natureza, dos seres, dos acontecimentos e das situações que interagem connosco, a vida está presente, presente em toda a parte, pedindo apenas para encontrar vida. Somos, de algum modo, receptores e passadores de vida.
Acolher a vida, valorizá-la, ampliá-la e espalhá-la à nossa volta, pode ser esse o sentido da nossa passagem sobre a Terra. Poderíamos, assim, renunciar a muitos engodos, a muitas mitologias à volta do amor. Ao aprendermos a amar-nos, poderíamos alargar as nossas relações em termos de “ecologia relacional”.
Se soubermos acolhê-las, é certo que receberemos dádivas da vida mas podemos também oferecê-las, espalhá-las, criá-las. Cada pessoa poderia interrogar-se à noite antes de adormecer:
Que presente de vida pude oferecer hoje? Que palavra, que olhar, que sorriso, que gesto, que aceitação, que confirmação ofereci, recebi, revelei?
Quem é que, todos os dias, é capaz de transmitir, àquele que encontra, o sentimento de fazer crescer a vida, de embelezar o seu olhar, de ter acesso à sua palavra, de se sentir mais amado, mais presente? Quem pode ter o propósito de se aceitar melhor, de ousar amar-se e de amar a tempo inteiro?
Tornar-se, assim, um semeador de Vida.
A vida é uma espécie de dádiva que dura um instante – apenas.
Herbjorg Wassmo
in contadores . destorias

Cayetano Arroyo


E fazei aquilo que a vós
não houve quem fizesse

para que em cada
geração

as árvores cresçam mais direitas.

Cayetano Arroyo

Clarice Lispector

É difícil perder-me. É tão difícil que provavelmente arrumarei depressa um modo de me achar, mesmo que achar-me seja de novo a mentira de que vivo."
Clarice Lispector

Pablo Neruda

Tu eras também uma pequena folha
que tremia no meu peito.
O vento da vida pôs-te ali.
A princípio não te vi: não soube
que ias comigo,
até que as tuas raízes
atravessaram o meu peito,
se uniram aos fios do meu sangue,
falaram pela minha boca,
floresceram comigo.

Dois amantes felizes não têm fim nem morte,
nascem e morrem tanta vez enquanto vivem,
são eternos como é a natureza.

Nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas nunca o teu riso,
porque então morreria.

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Autor desconhecido

Posso ter defeitos, viver ansioso e ficar irritado algumas vezes,
mas não esqueço de que a minha vida é a maior empresa do mundo.
E que posso evitar que ela vá à falência.
Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver,
apesar de todos os desafios, incompreensões e períodos de crise.
Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e se tornar um autor da própria história.
É atravessar desertos fora de si, mas ser capaz de encontrar
um oásis no recôndito da sua alma.
É agradecer a Deus a cada manhã pelo milagre da vida.
Ser feliz é não ter medo dos próprios sentimentos.
É saber falar de si mesmo.
É ter coragem para ouvir um “não”.
É ter segurança para receber uma crítica,
mesmo que injusta.
Pedras no caminho?
Guardo todas, um dia vou construir um castelo…


(texto de autor desconhecido erradamente atribuído a Fernando Pessoa)

terça-feira, 25 de setembro de 2007

Ángel Gonzalez

CANCIÓN DE AMIGA

Nadie recuerda un invierno tan frío como éste.

Las calles de la ciudad son láminas de hielo.
Las ramas de los árboles están envueltas en fundas de hielo.
Las estrellas tan altas son destellos de hielo.

Helado está también mi corazón,
pero no fue en invierno.
Mi amiga,
mi dulce amiga,
aquella que me amaba,
me dice que ha dejado de quererme.

No recuerdo un invierno tan frío como éste.

Sentir de verdade...

"Al lector se le llenaron los ojos de lágrimas, y una voz cariñosa le susurró al oído:
- Por qué lloras, si todo en ese libro es de mentira?
Y él respondió:
- Lo sé pero lo que yo siento es de verdad.

"Ángel González, 101+19 = 120 poemas"

in la double vie de veronique

Era uma vez

Era uma vez...

E um dia a menina parou. Olhou para a estrada e percebeu que estava perdida. Inverteu a marcha até ao último cruzamento. Já lera uma história em que os pássaros tinham comido as migalhas de pão. As pedrinhas não teriam sido suficentes para marcar o caminho. Concluíu que não podia voltar para trás. Sentou-se virada para o desconhecido. E suspirou.
Depois levantou-se, sacudiu a saia e continuou.

in dias de uma princesa

domingo, 23 de setembro de 2007

Umas vezes


Umas vezes o tanto que falta

outras o que já foi caminhado.

lindo

Os anões são tão pequeninos
Que não fazem anos.

Fazem aninhos.
Os gigantes são tão grandalhões Que não fazem anos.
Fazem anões.

terça-feira, 18 de setembro de 2007

Também eu Sophia, quando morrer quero voltar para viver todos os instantes que não vivi junto do mar.

"Dizemos «Sophia» como se esta palavra fosse sinónimo absoluto de poesia".

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco



segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Andy Mckee - Guitar - Drifting - www.candyrat.com

Jorge Luís Borges

Y Uno Aprende

Después de un tiempo,
uno aprende la sutil diferencia
entre sostener una mano
y encadenar un alma,
y uno aprendeque el amor no significa acostarse
y una compañía no significa seguridad
y uno empieza a aprender...
Que los besos no son contratos
y los regalos no son promesas
y uno empieza a aceptar sus derrotas
con la cabeza alta
y los ojos abiertos
y uno aprende a construir
todos sus caminos en el hoy,
porque el terreno del mañana
es demasiado inseguro para planes...
y los futuros tienen una forma de caerse
en la mitad.
Y después de un tiempo
uno aprende que si es demasiado,
hasta el calorcito del sol quema.
Así que uno planta su propio jardín
y decora su propia alma,
en lugar de esperar a que alguien le traiga flores.
Y uno aprende que realmente puede aguantar,
que uno realmente es fuerte,
que uno realmente vale,
y uno aprende y aprende...


y con cada día uno aprende.

Jorge Luís Borges

Starry Starry Night

SAI

"Sai.
Abre a porta e vai.
Estende as mãos à vida e mistura-te com os fumos, os ruídos, as pessoas.
Cheira-os, ouve-os, toca-lhes,mas não te envolvas.
Cria à tua volta a auréolasimples mas intensa da verdade.
Desfaz-te da indiferença vende a apatia.
Dá com alegria, recebe com amor.
Anseia com ansiedade, vive cada minuto.
Para que nunca acordes ao ladode vozes murchas e flores ressequídas!
Para que nunca tenhas de correr em busca de tempo perdido!"

Autor desconhecido

domingo, 16 de setembro de 2007

A Moça Tecelã

Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear.Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte. Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava. Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela. Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza. Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias. Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranqüila.
Tecer era tudo o que fazia.Tecer era tudo o que queria fazer.
Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou em como seria bom ter um marido ao lado. Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado. Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponto dos sapatos, quando bateram à porta.Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando em sua vida.Aquela noite, deitada no ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade. E feliz foi, durante algum tempo.Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque tinha descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.— Uma casa melhor é necessária — disse para a mulher. E parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer. Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente.— Para que ter casa, se podemos ter palácio? — perguntou. Sem querer resposta imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates em prata.Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia.Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira. Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre.— É para que ninguém saiba do tapete — ele disse.E antes de trancar a porta à chave, advertiu: — Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos! Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados.Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer .E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou em como seria bom estar sozinha de novo. Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear.Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu tecido.Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins.Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha.E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela.A noite acabava quando o marido estranhando a cama dura, acordou, e, espantado, olhou em volta.Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu.

Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte.

Marina Colasanti, Um espinho de marfim

O Brincador

Quando for grande, não quero ser médico, engenheiro ou professor.Não quero trabalhar de manhã à noite, seja no que for.Quero brincar de manhã à noite, seja com o que for.Quando for grande, quero ser um brincador.Ficam, portanto, a saber: não vou para a escola aprender a ser um médico, um engenheiro ou um professor.Tenho mais em que pensar e muito mais que fazer. Tenho tanto que brincar, como brinca um brincador, muito mais o que sonhar, como sonha um sonhador, e também que imaginar, como imagina um imaginador... A minha mãe diz que não pode ser, que não é profissão de gente crescida.E depois acrescenta, a suspirar: "é assim a vida".Custa tanto a acreditar. Pessoas que são capazes, que um dia também foram raparigas e rapazes, mas já não podem brincar.A vida é assim? Não para mim. Quando for grande, quero ser um brincador.Brincar e crescer, crescer e brincar, até a morte vir bater à minha porta.Depois também, sardanisca verde que continua a rabiar mesmo depois de morta.Na minha sepultura, vão escrever: Aqui jaz um brincador.

Álvaro Magalhães

Marta Escudero

Marta Escudero é uma contadora mexicana do universo do feminino: de alcova, humilhações, diários, suspiros, trabalho. Conta histórias de "buenas mujeres de moral distraída"- Las Ruleteras. Este era o nome que na Cidade do México se dava aos táxis e que por expansão de significado se começou a dar também às prostitutas, mulheres que são “poco respetuosas con las buenas costumbres y tienen tendencia a un amplio intercambio carnal”. Las Ruleteras é um espectáculo de contos com reportório de contos muito variado de: Isabel Allende "Hermelinda", Gabriel García Márquez "la increible historia de la cândida Erendira y de su abuela desalmada", Francisco Rojas González "Las Rojas Goméz", ou enraizados na tradição oral mais ancestral como o conto que ouvimos. A música de Pep Lladó ambienta e enfatiza os momentos da narração.

(roubado do tricontando)

http://www.youtube.com/watch?v=3JIoi69rPFI

A SEREIA DAS PERNAS TORTAS

Era uma vez uma mulher que tão depressa era feia como era bonita.Quando era bonita, as pessoas diziam-lhe:-Eu amo-te.E iam com ela para a cama e para a mesa.Quando era feia, as mesmas pessoas diziam-lhe:-Não gosto de ti.E atiravam-lhe com caroços de azeitona à cabeça.A mulher pediu a Deus:-Faz-me ou bonita ou feia de uma vez por todas e para sempre.Então Deus fê-la feia.A mulher chorou muito porque estava sempre a apanhar com caroços de azeitona e a ouvir coisas feias. Só os animais gostavam dela, tanto quando era bonita como quando era feia, como agora que era sempre feia. Mas o amor dos animais não lhe chegava. Por isso deitou-se a um poço. No poço, estava um peixe que comeu a mulher de um trago só, sem a mastigar.Logo a seguir passou pelo poço o criado do rei, que pescou o peixe.Na cozinha do palácio as criadas, a arranjarem o peixe, descobriram a mulher dentro do peixe. Como o peixe comeu a mulher mal a mulher se matou e o criado pescou o peixe mal o peixe comeu a mulher e as criadas abriram o peixe mal o peixe foi pescado pelo criado, a mulher não morreu e o peixe morreu.As criadas e o rei eram muito bonitos. E a mulher ali era tão feia que não era feia. Por isso quando os criados foram chamar o rei e o rei entrou na cozinha e viu a mulher, o rei apaixonou-se pela mulher.-Será uma sereia?- perguntaram em coro as criadas ao rei.- Não, não é uma sereia porque tem as duas pernas, muito tortas, uma mais curta que a outra. - respondeu o rei às criadas.E o rei convidou a mulher para jantar.Ao jantar, o rei e a mulher comeram o peixe. O rei disse à mulher quando as criadas foram embora:- Eu amo-te.Quando o rei disse isto, sorriu à mulher e atirou-lhe com uma azeitona inteira à cabeça. A mulher apanhou a azeitona e comeu-a. Mas, antes de comer a azeitona, a mulher disse ao rei:- Eu amo-te.Depois comeu a azeitona. E casaram logo a seguir no tapete de Arraiolos da casa de jantar.

Adília Lopes, In Quem quer casar com a poetisa?

As máquinas de Munari


Bruno Munari é um nome frequentemente associado ao design, mas este é um livro para a infância...
.

O Amor é um lugar estranho

Quadras para Ofélia Queiroz (1920)

Quando passo um dia inteiro
Sem ver o meu amorzinho,
Corre um frio de Janeiro
No Junho do meu carinho.


Meu amor, dá-me dois beijos
P'ra me dares um terceiro,
Que é só para haver um quarto
Antes do quinto e do primeiro.


O meu amor é pequeno,
Pequenino não o acho,
Uma pulga deu-lhe um coice,
Deitou-o da cama abaixo.


Fernando Pessoa

Patricia Orr

Los cuentos son ventanas al mundo que pueden cambiar la vidaLa vida me ha trazado diversos caminos, entre ellos: el Psicoanálisis y la Narración Oral. Como psicoanalista, trato de aliviar el dolor anímico y hacer surgir al sujeto de cada historia de vida entregada por las voces de los Otros desde antes de nacer.Como narradora oral, trato de contar las historias de vida, la propia y la de los otros, entramadas en los cuentos que la humanidad ha engendrado para aliviar el dolor de existir. ¿Qué es nuestra vida sino lo que podemos contar de ella?"

Patrícia Orr

A velha e os lobos

Uma velha tinha muitos netos, um dos quais estava ainda por baptizar. Um dia a boa velhinha saiu a procurar um padrinho para o seu netinho e no caminho encontrou um lobo, que lhe perguntou:" -Onde vais tu, velha?"- ao que ela respondeu:"-Vou arranjar um padrinho para o meu neto.""-Ó velha, olha que eu como-te!""- Não me comas que quando se baptizar o meu menino, dou-te arroz-doce."Foi mais adiante e encontrou outro loboque lhe fez a mesma pergunta e ela deu-lhe a mesma resposta. Depois encontrou um homem que lhe perguntou o que ela ia fazer e, como ela lhe respondesse que ia procurar um padrinho para o seu neto, ele ofereceu-se logo para isso. Depois a velha contou-lhe o encontro que tinha tido com os lobos e o homem deu-lhe uma grande cabaça e disse-lhe que se metesse dentro dela que assim iria ter a casa sem que os lobos a vissem. A velha meteu-se na cabaça e esta começou a correr, a correr, até que encontrou um lobo que lhe perguntou: "- Ó cabaça, viste por aí uma velha?""- Não vi velha, nem velhinha;Não vi velha, nem velhão;Corre, corre, cabacinhaCorre, corre, cabação."Mais adiante encontrou outro lobo que perguntou também:"- Ó cabaça, viste por aí uma velha?""- Não vi velha, nem velhinha;Não vi velha, nem velhão;Corre, corre, cabacinhaCorre, corre, cabação."A velha, julgando que já estava longe dos lobos, deitou a cabeça fora da cabaça, mas os lobos, que a seguiam, saltaram-lhe em cima e comeram-na.

Versão do conto A velha e os lobos, recolhida na região de Coimbra

Mestre Pádua




O olho vê, a lembrança revê e a imaginação trevê...
É preciso trever o mundo!





A LENDA DO CONTADOR DE HISTÓRIAS

http://www.youtube.com/watch?v=dg7llvf7Okc